Sobre o Software Livre e o PPA
Fonte: Acervo Flickr Presidência
A escolha do Decidim enfrentou algumas resistências.
O diretor de tecnologias e um dos criadores da Nômade, Luís Sanches, lembra que havia uma descrença por parte da Dataprev, empresa que sustenta e coordena toda a infraestrutura tecnológica do Governo Federal, de que seria possível uma customização de uma ferramenta que não era utilizada no país, desenvolvida numa linguagem também pouco usual por aqui, em tão curto espaço de tempo.
“Houve todo um processo de transferir essa tecnologia, de ensinar como usar. Todas as aulas que eu dava de infraestrutura, de implantação, de desenvolvimento, eram gravadas para que eles pudessem replicar e alocar novos perfis de desenvolvimento. E enquanto eu repassava a parte de tecnologia, Gama dava mentoria e aulas pras pessoas da área administrativa, garantindo que elas pudessem ter a autonomia necessária ao processo”.
Para Sanches, o que determinou que a escolha pelo Decidim se concretizasse foi não apenas o fato de ser um software livre mundialmente reconhecido, mas o fato de ter passado em todos os testes de segurança e infraestrutura realizados pela Dataprev. “Não foi favoritismo, foi porque passou pelos testes de medição de performance com ferramentas da IBM”, explica.
A integração com o gov.br foi um dos principais desafios de implementação do Decidim na infraestrutura do governo, de acordo com o servidor da Dataprev, Ayslan Sousa. Movimento que garantiu tanto uma maior segurança no uso da plataforma, evitando perfis falsos e riscos diversos do anonimato, quanto uma otimização da própria base de dados de governo, gerando milhares de novos cadastros antes inexistentes. Sousa também destaca que a adaptação da plataforma Decidim ao padrão do design system do governo, ao conjunto de padrões de interface que devem ser seguidos por designers e desenvolvedores para garantir a experiência única na interação com os sistemas interativos, foi outra questão bastante complexa, com um resultado considerado exitoso pelos participantes.
O futuro
A escolha de um software livre para a realização do maior processo de participação digital do Brasil sinaliza algumas coisas muito importantes para o futuro. Primeiro, um potencial de evolução da plataforma que está longe de chegar num limite conhecido. Na opinião de Sanches, o PPA “só arranhou as funcionalidades de participação já desenvolvidas na experiência do software”, sendo o futuro muito promissor tanto do ponto de vista técnico quanto político.
“As pessoas costumam se agrupar digitalmente, usando mídias digitais proprietárias, como os vários produtos da meta, do Google etc, as famosas bigtechs. E as experiências digitais e livres possibilitam a organização da informação por módulos diversos, gerando formas muito mais autônomas de organizar e gerir os dados das pessoas e utilizá-los a favor da cidadania”.
Na mesma direção, Sousa aponta que o uso de software livre no governo é positivo porque “promove transparência, segurança e colaboração”. E tecnicamente, “oferece flexibilidade e possibilidade de customização, incentivando a participação da comunidade e reduzindo a dependência de fornecedores proprietários”.
Para Carla Rocha, uma grande potência de futuro que o processo todo revelou foi uma dimensão de participação que era desconhecida da maioria dos brasileiros, que pela primeira vez pôde elaborar propostas e votar em propostas relacionadas à realidade de cada um.
“Uma parte muito interessante do projeto foi a compreensão de que a plataforma é uma ferramenta essencial, mas que quem faz participação são as pessoas, que têm que estar motivadas de alguma forma a entrar na plataforma, atravessar uma experiência que ainda é problemática, do uso do gov.br, e elas conseguiram. Entraram, logaram, escreveram propostas, votaram em propostas, mobilizaram outras pessoas a darem seus votos, participando de forma ativa de um processo político imenso”.
Assim, a cidadania ganha uma nova perspectiva, em escala global, empurrando com seus resultados um debate urgente e inevitável: o da soberania digital no país. “A cultura digital brasileira já se tornou referência justamente em inovação de políticas públicas, que entre outras coisas fomenta essa expectativa, que é uma demanda e também uma oportunidade, de não só promover participação digital no governo, mas promover isso de forma aberta, colaborativa, com infraestruturas soberanas, que inspirem, possibilitem uma relação. Estamos falando de um processo cívico que caminha para o ideal, otimizado, qualificado e que disponibiliza tecnologia para que isso possa ser replicado”, reflete Uirá Porã.
A comunicação em rede
Um dos fatos que demonstram que o Brasil Participativo de fato tornou-se uma referência pelo modo como foi construído e envolveu a população foi o seu reconhecimento imediato pela comunidade internacional, com o convite para o relato da experiência em eventos internacionais importantes como o Decidim Fest 2023, realizado em Barcelona, e o Getting Civic Tech Right Democracy, promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), realizado em Paris.
Algumas estratégias de comunicação também merecem os créditos pelo alcance da empreitada. Primeiro, uma aliança com o universo dos influenciadoras(es) e comunicadoras(es) livres, que muito embora não tivessem familiaridade com a participação social, carregavam consigo um imenso potencial de mobilização digital, fazendo de suas redes espaços para o engajamento necessário ao projeto, de maneira voluntária, revelando uma possibilidade de parceria longínqua com ações governamentais dessa natureza.
A ocupação da plataforma por essas dinâmicas também gerava dados que ajudavam a entender fragilidades do processo, como aponta Carla Rocha.
“Toda semana a gente baixava todos os dados de uso da plataforma para entender quem eram as pessoas, de onde estavam vindo os votos e as propostas, quais os lugares do Brasil que estavam participando de forma mais abrangente e também o contrário, e isso direcionava a mobilização, orientada a dados”.
Para Danilo Castro, jornalista que coordenou a comunicação em rede do Brasil Participativo, tão importante quanto reconhecer o sucesso do projeto é seguir investindo nas diversas camadas que ainda precisam ser melhoradas.
“Há muito o que evoluir, principalmente no que tange às questões de acessibilidade – que precisam se tornar uma prioridade na plataforma, com atualizações periódicas como método. Desde o acesso à internet em localidades remotas, às questões de acessibilidade do login gov.br, do Governo Federal, e também à acessibilidade para pessoas com deficiência e/ou dificuldade de leitura”.
Nara Pessoa, comunicadora e consultora da Nômade, aponta para questões ainda mais profundas, que não se pode perder de vista quando o intuito é realmente a realização de uma participação social verdadeira. “Fazer participação social requer muita escuta, muito diálogo, requer lidar com o tensionamento de olhar para além do que está posto, olhar para as pessoas mesmo, num processo de construir junto, de enfrentar junto o problema no território”, o que não aconteceu no curto espaço de tempo em que executou-se o Brasil Participativo, na opinião da jornalista.
Ainda assim, Castro reafirma que o Brasil serviu de exemplo para outras nações quando conseguiu conectar uma grande parcela do povo brasileiro, que sugeriu suas ideias e seus sonhos ao governo. “O povo podendo incidir nas políticas públicas de uma forma nova e desburocratizada, sem necessidade obrigatória de integrar órgãos colegiados para conseguir deliberar, sugerir, opinar e propor. Sem dúvidas, é um marco que aquece o coração. Participação social é direito do povo e saber que fomos uma ponte para a abertura dos portões da participação é gratificante”.
Citações